terça-feira, 26 de março de 2013

O ator e a personagem



A personagem Maria Betânia foi criada no início dos anos oitenta pelo ator Antônio Carlos Falcão, gaúcho de São Borja, admirador e fã da verdadeira Bethânia. Falcão começou sua carreira no final dos anos 70 em Porto Alegre. De tanto ouvir a cantora surgiu à personagem e as semelhanças no timbre e no gestual se aprofundaram com a paixão. Nas palavras de Falcão, “Betânia nasceu no banheiro, na cozinha… era cantada enquanto eu cozinhava ou no banho, como muita gente. Um dia veio o convite de um grupo de dança: eu cantaria ‘oração da Mãe Menininha’ e eles dançariam. Uma brincadeira que, ironicamente, acabou no palco”.
Mais que uma homenagem a Maria Bethânia Viana Telles Veloso, “A Doce Bárbara” é um exercício constante de improvisação de um jogo constante com o público que muitas vezes reage como se estivesse diante da própria Bethânia. Para isso é necessário aquecimento vocal e muita concentração prévia. Falcão acredita que o ator deve desaparecer para que o personagem cresça e apareça. “Nossa viagem é buscar certas emoções da alma e do corpo para que a personagem surja sem pudor, tão real que pareça verdadeira. Aí está a loucura e a magia do teatro”, conclui Falcão. Além de ser uma homenagem à artista baiana, o espetáculo também é um tributo à Música Popular Brasileira, paixão do ator. Falcão diz ter sempre escutado MPB. “Gosto da nossa música e considero Maria Bethânia a maior intérprete brasileira, é uma grande cantora”. A influência da artista para a carreira de Falcão foi à própria criação da personagem Betânia.
Um dos pontos altos do espetáculo é a aparição de Chico Buarque, onde o ator Antonio Carlos Falcão interpreta um dueto entre Chico e Betânia. O público nunca consegue esperar até o final da música e sempre aplaude entusiasticamente quando Chico é interpretado pelo ator. Falcão, Betânia e Chico cantam a música “tatuagem”. Outro momento contagiante e hilário é a transmutação de Betânia em Nei Matogrosso. Entre uma história e uma canção, Falcão inclui fragmentos inspirados em Eduardo Galeano, Freud, e o poeta, escritor e psicanalista gaúcho Celso Gutfreind.
A Doce Bárbara sempre foi um espetáculo maleável: enquanto a história permanece inalterada, as músicas mudam a cada temporada, variante essa que acompanha a carreira da musa Maria Bethânia. Falcão ainda assina pelos textos e direção do espetáculo. Os figurinos são criados por Rô Cortinhas, renomada figurinista de Porto Alegre. Na concepção da luz, outra estrela dos palcos gaúchos, Marga Ferreira, uma das mais requisitadas iluminadoras do Brasil. Na atual temporada o ator conta com o apoio dos músicos: Daniel Nodari (guitarra e voz), Alexandre Missel (violão e voz), Aldo Ibaños (baixo e voz) e Cesar Audi (bateria). Aldo Ibaños e Daniel Nodari já acompanham o ator no espetáculo por mais de 10 anos e os músicos não só tocam, eles literalmente vestem a camisa e discretamente contracenam ao longo de todo o espetáculo trazendo um brilho extra a apresentação. No documentário sobre os 30 anos da personagem chamado “Documentira”, vários músicos, amigos e o próprio Antônio Carlos Falcão falam de forma bem humorada sobre a personagem e os 30 anos de trajetória. Num depoimento do baterista Cesar Audi, ele expõe a perspectiva de todos os músicos referente à parte musical do espetáculo: “o repertório da Betânia não é fácil de tocar, é um trabalho sério, bem ensaiado e tem que ter muito pique de palco e profissionalismo.”
O documentário “Documentira – Maria Bethânia 30 anos” está disponivel aqui mesmo no site, na página sobre o documentário.

Eu e o personagem Maria Betânia – Por Nei Lisboa

Estive no palco com Antônio Carlos Falcão um sem-número de vezes, ao longo de alguns anos e milhares de quilômetros, tendo o prazer de contracenar ou simplesmente admirá-lo na pele de muitos personagens, todos genialmente interpretados e hilariantes. Mas com a Betânia, sempre e desde a primeira vez, algo de estranho e um tanto indefinível me acontece: simplesmente não aceito que seja ele. Posso tê-lo visto preparar-se para o show, vestir-se, maquiar-se, ensaiar o texto, nada disto adianta, quando aquela mulher sobe ao palco, me desculpem, mas é ela e mais ninguém quem está ali. Não poucas vezes me assustei ao vê-la entrar em cena, tanto pela preocupação de receber bem convidada tão ilustre quanto por me perguntar onde andaria o Falcão, que não aparecera.

Hoje em dia, entendo — porque os dois me ensinaram – que um figurino, uma peruca, uma ribalta e a verve afiada podem até produzir um transformismo, e muitos os há por aí. Mas só o canto, a interpretação, o encanto e o respeito pela personagem produzem magia. Respeito como todo o resto, que nunca faltou ao Falcão. E que, com todo o respeito, não é quem vai estar no palco hoje.